domingo, abril 24, 2005

Os sertões de Suassuna

O Cultura do Estadão de hoje traz uma entrevista com Ariano Suassuna aproveitando o relançamento de algumas de suas obras em edições de luxo. O autor discute o alcance de seu trabalho e tece comentários sobre Os Sertões.
Como o acesso ao conteúdo on-line do Estadão é restrito, Tutti funghi venenosi, cumprindo seu papel de disseminar cultura e resolver o problema da falta do que fazer de seu modesto autor, orgulhosamente transcreve abaixo a parte da entrevista em que Suassuna aborda a obra de Euclides da Cunha:

E literatura nacional, você tem vontade de ler ou reler alguma coisa ultimamente?
A última obra que reli foi Os Sertões, que é outra de minhas obsessões. Tenho uma enorme admiração por Euclides da Cunha. Reconheço seus defeitos, especialmente a influência funesta que recebeu do positivismo de Augusto Comte e do evolucionismo de Herbert Spencer, algo realmente racista. Ele até viveu um drama pessoal ao acreditar que a mestiçagem brasileira era um defeito.Mas, apesar disso, sua força como escritor é tão grande que todas essas influências já envelheceram e a força da linguagem e da própria história que ele conta ainda está muito viva. Leio Os Sertões como se lê a Ilíada. Leio não com os olhos de um sociólogo mas com os que buscam um épico. Meus críticos habituais até se admiram e dizem: Gilberto Freire não escreveu os mesmos erros que o Euclides da Cunha e, mesmo assim, você prefere o Euclides. Eu digo: é isso mesmo. Prefiro Euclides da Cunha com todos os seus defeitos. Como também prefiro Euclides da Cunha a Machado de Assis. Acho Machado um excelente escritor, mas ele não tem uma qualidade que me toca muito e que eu vejo no Euclides. É aquele galope épico - a literatura de Machado de Assis é muito cravada. Em suas histórias, por exemplo, os homens nem quintal têm em suas casas! Tudo se passa entre quatro paredes. Isso me faz lembrar de um compositor, que foi parceiro de Manuel Bandeira e se chamava Jardel Valle. Pois bem, ele fazia observações ótimas. Jardel reconhecia que Machado de Assis era um gênio, não havia como negar.Mas era um gênio míope. Faltava a ele aquela amplitude que, em Euclides, sobrava.

Você prefere a terceira parte de Os Sertões em relação às duas primeiras?
Não. Leio a obra como quem lê um poema. Acho maravilhosas as discussões de paisagem, a forma como descreve a vegetação - parece que as pedras conversam com as plantas. Só não gosto daquelas besteiras que ele herdou da falsa ciência social européia, ali ele tropeçou. Costumo dizer que sempre é mais fácil observar mais longe quando se está nos ombros de gigantes. Euclides foi formado (e deformado) no Brasil oficial, o que tornou sua conversão rápida e brusca demais quando se viu diante do Brasil real. Por isso, ele cometeu uma injustiça com o Brasil real ur3.4.bano e eu também, influenciado por ele, caí nessa cegueira - como a primeira vez que viu o Brasil real foi no sertão, Euclides não notou, por exemplo, que na cidade havia a favela, que não era chamada dessa forma. Ele tratava o povo sertanejo de Canudos como a rocha viva da raça brasileira. Mas os soldados do Exército que cercaram o povoado também eram do Brasil real e estavam recrutados a serviço do Brasil oficial para matar seus irmãos. Assim, chamavam de favela o que eles viam em Canudos. Quando voltaram para o Rio, eles passaram a usar a mesma denominação para os casebres mais pobres. Euclides da Cunha se converteu ao Brasil real mas, a princípio, só conheceu esse Brasil real no sertão, daí seu texto maravilhoso sobre a base da nossa nacionalidade. Pois bem, ele percebeu aquele defeito de um Brasil oficial e a conversão foi brusca demais, especialmente para quem5. ainda tinha a cabeça perturbada pela falsa ciência social. Por isso que considero Euclides da Cunha antes de mais nada um grande escritor, apesar da visão dos sociólogos. Aliás, vi uma observação agudíssima de Walnice Nogueira Galvão, que me chamou a atenção para um fato importante: a Guerra do Contestado foi muito maior em termos reais que a de Canudos, mas só falamos hoje de Canudos.

E por quê?
Porque foi escrito a respeito de Canudos uma grande obra literária e o Contestado não teve essa sorte. Euclides da Cunha, por meios literários, fez do acontecimento local de Canudos um fato universal. Em minha opinião, não se pode entender o Brasil sem entender Canudos. E não é possível entender Canudos se o observador não fizer duas coisas: primeiro, restringir a imagem para depois ampliá-la. Ou seja, é preciso começar da nossa vida pessoal. Na casa de um brasileiro branco e privilegiado, a empregada doméstica, negra e pobre, é oprimida e explorada, ou seja, o Brasil oficial está acabando com o Brasil real. É o Brasil dos que arrasaram Canudos que está atacando um pequeno arraial de Canudos que tem dentro de casa. Quando os Estados Unidos invadem o Oriente Médio, é a supremacia de uma poderosa tecnologia. Quando o homem invadiu Cartago, era o arraial de Canudos sofrendo um ataque do império poderoso. Quando os Estados Unidos invadem, é a Roma moderna atacando o arraial de Canudos.Então é por isso que Os Sertões é um livro universal. Euclides imortalizou e universalizou. Assim, qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo entende o que é aquilo.Porque aquela história acontece, quando não no coletivo, dentro da casa de uma pessoa. ?

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